Sobre o Infanticídio

A Chu Gangshou, magistrado principal de Wuchang (1083), Su Shih vos saúda:

Ontem, estava eu em Wuchang, havendo-me detido na casa de Wang Tienlin. Contou-me ele uma história muito comovente e, após ouvi-la, não consegui comer. Creio dever levar este caso à vossa atenção, senão à de outros, e, assim, estou-vos enviando esta carta por intermédio do Sr. Wang. Outras pessoas podem estar demasiado atarefadas com seus próprios assuntos para poder-se dar ao tempo e ao trabalho de cuidar de algo que está fora de sua rotina oficial.

Disse-me Tienlin que, no distrito de Yizhou e Ozhou (Wuchang), os lavradores pobres, em regra, criam só dois filhos e uma filha, matando, ao nascerem, as crianças que passam desse número. Desagrada-lhes especialmente criar filhas, sendo a conseqüência haver mais homens do que mulheres, e muitos solteiros na região. A criança é muitas vezes morta, ao nascer, por afogamento em água fria, mas, a fim de fazer isso, os pais da criança têm de fechar os olhos e virar o rosto enquanto a prendem sob a água até que morra após chorar breves instantes. Há na aldeia de Shenxian um homem chamado Shi Guei que, certa vez, matou gêmeos. No verão passado, sua esposa deu luz a quádruplos. Foi um caso horrível: mãe e crianças morreram. Tal é o castigo de Deus, e, contudo, mostra-se a gente por demais ignorante para mudar de costumes.

Quando Tienlin ouve falar que em sua vizinhança há mulheres grávidas, indigentes, habitualmente vai ter com a família e, dando aos pais alimentos e roupa, consegue salvar muitas vidas infantis. Depois que uma criança é assim salva e conta alguns dias de idade, os pais recusam separar-se dela, ainda quando alguma família a deseje adotar. Isto mostra que o amor paterno pelos filhos está sempre presente, sendo apenas enceguecido pelo costume.

Ouvi dizer que há em vosso distrito um certo Xin Guangheng que acaba de ser aprovado em concurso e é juiz em Anzhou. Quando sua mãe o estava esperando, o irmão dela sonhou que uma criancinha lhe puxava as roupas, como se lhe quisesse dizer alguma coisa. Teve o mesmo sonho na noite seguinte e a criança parecia insistente. Sabendo que sua irmã ia ter uma criança e talvez não quisesse mais filhos, apressou-se em ir à casa dela, e chegou justamente à hora em que estava sendo preparada a bacia com água. Desse modo, Xin foi salvo e cresceu. O povo de vosso distrito conhece bem esta história.

De acordo com a lei, quem mata maldosamente seu descendente está sujeito à pena de dois anos de trabalhos forçados, e com base nesta lei, as autoridades podem agir. Espero que dê as instruções para as autoridades das diversas cidades para reunirem os anciãos de cada aldeia, informando-os a respeito dessa lei. Devem ficar adequadamente impressionados com a idéia do castigo, dizendo-lhes que a lei vai ser aplicada; e, ao voltar para casa, devem dizê-lo aos demais habitantes da aldeia. Podeis mandar que boletins oficiais sejam afixados nas paredes para esse fim, e oferecer recompen­sas às pessoas que denunciem tais casos vindo o dinheiro dos pais que cometam tal crime e de seus vizinhos na mesma unidade “Baojia”. Se se tratar de lavrador meeiro, o dono das terras também será responsabilizado. Quando uma mulher espera um filho, seus vizinhos e o senhorio devem saber disso. Portanto, quando se mata uma criança, seus vizinhos estão em condições de comunicar o fato e, se não o fizerem é lícito puni-los. Se punirdes uns poucos casos criminosos como advertência aos demais, pode ser detido esse horrível costume.

Além disso, podeis dar instruções às autoridades locais para reunirem as famílias ricas e fazer-lhes veemente apelo por socorros. Se os pais forem realmente pobres a ponto de não poder sustentar os fi1hos, poderão ser ajudados com dinheiro e presentes. O ser humano não é destituído de sentimentos; não é feito de pau, ou de pedra, e sentirá alegria em salvar o próprio filho. Se um pai for impedido de matar o filho nos primeiros dias, depois disso não o fará ainda que lhe peçais que o mate. Imaginais quantas vidas tereis salvo, daqui por diante, se assim agirdes? O budismo prega contra a supressão de vidas e considera gravíssimo crime matar animais que amamentam os filhotes e se reproduzem por união. Quão mais sério não é matar um pequenino ser humano! Muitas vezes nos referimos a uma criança enferma e sofredora como a um "pobre inocente"; o infanticídio é, em verdade, a matança dos inocentes. Determina a lei que só quem cometa assassínio por demência senil está isento da pena de morte. E não deveremos encarar como crime muito mais odioso matar uma criança inocente? Se puderdes salvar essas vidas infantis, vosso mérito no céu será dez vezes maior do que por perdoar os que atentam contra adultos...

Quando eu servia em Mizhou, houve um ano de fome e muitos pais foram forçados a abandonar os filhos. Consegui coletar recursos e obter vários milhares de fardos de arroz para dar alimentação aos órfãos. Cada família que se encarregasse de uma criança recebia mais de seis almudes de arroz por mês. Após um ano, os pais que adotaram esses órfãos amavam-nos como se fossem seus próprios filhos e os órfãos haviam encontrado lar. Pude salvar, assim, várias dúzias de crianças. É coisa muito simples e fácil de fazer. Ousei trazer este assunto à vossa atenção porque sei estar falando a um verdadeiro amigo e, por esse intrometimento, rogo vosso perdão.

[por Su Dongpo (Su Shih), 1037-1101]