Os Textos

 

Começamos nossa apresentação com dois extratos dos clássicos chineses, produzidos [em sua versão mais conhecida] em torno do século 12 aec, e que trazem dados fundamentais da história, cultura e pensamento da ancestralidade chinesa. O primeiro livro, as ‘Recordações Rituais’ [Liji] constituía uma enciclopédia de livros sobre costumes, crenças e práticas sociais, proporcionando um quadro vivo desse mundo. Sua edição final teria sido feita na dinastia Han [206 aec- 221 ec], o que permitiu que muitas interpolações e mudanças fossem feitas. Por isso, o que vemos ali é o retrato de uma sociedade onde as práticas de separação dos sexos eram defendidas como algo necessário para o equilíbrio e o estabelecimento de condutas exemplares, em prejuízo constante do feminino. Podemos contrastar isso com a seleção do ‘Tratado dos Poemas’ [Shijing], onde as mulheres aparecem muito mais ativas e vivas em suas expressões particulares, sentimentos e vontades. Essa condição contraditória revela, de fato, o embate entre um discurso estatal-intelectual de domínio do feminino e a livre expressão popular, que admitia uma liberdade maior nas relações humanas. No âmbito das cortes era crucial controlar a estrutura familiar, definir arranjos matrimoniais e supervisionar os continuadores do clã; mas entre a população comum, onde era necessário dividir atividades de trabalho e a vida sempre era mais dura, a noção de harmonia e equidade entre sexos era muito mais presente e real, senão até mesmo necessária, do que no discurso erudito.

Contudo, o período Han inicia um recrudescimento das tentativas de imposição de uma agenda misógina, que se refletem na definição de ‘formas ideais de conduta’ especificamente para as mulheres, em uma relação extremamente delicada de concessão - submissão. Por meio de um Confucionismo bastante deturpado em vários aspectos, a dinastia Han buscava reelaborar as normas de funcionamento da sociedade com base numa reinterpretação dos textos antigos. Isso implicava em uma acentuada importância a regulação da conduta feminina, relacionado diretamente aos problemas endógenos da vida política.

Um exemplo claro dessa iniciativa é o livro ‘Lienu Zhuan’ [‘Biografias de mulheres exemplares’ – eventualmente grifado também como ‘Lienu Zhizhuan’] de Liu Xiang [77-6 aec], no qual são apresentadas biografias femininas de mulheres castas, sábias e dedicadas, mas também, perversas e más. A tônica das biografias segue um curso definido: a conduta apropriada traz recompensas morais e sociais, a conduta depravada causa desgraça e ruína. Embora mulheres e homens dividam a responsabilidade pelos erros e desastres, é nítida tentativa de culpabilizar as mulheres pela sua capacidade de influenciar o masculino.

Liu Xiang podia representar a onda machista que tomara de assalto à mentalidade política, mas não era nem de longe unânime. O período Han marca o surgimento de uma sexologia daoísta que propunha a clara necessidade de harmonia entre homens e mulheres. Isso seria necessário não apenas no âmbito da saúde e do bem estar, mas também, no conjunto das relações sociais e nas dimensões religiosas. O culto e a valorização do feminino eram elementos notáveis dessa reação intelectual e epistêmica ao discurso moralizante do império. Uma série de três textos que aqui apresentamos nos proporciona um panorama bastante revelador sobre isso: o primeiro, o ‘Livro da arte da Alcova’ [Fang Zhongshu] traz uma série de textos que discutem como o intercurso sexual deve ser realizado de maneira apropriada, estabelecendo sentimento, saúde e harmonia aos envolvidos; no mesmo sentido, um pequeno fragmento do ‘Tratado Interno’ [Neijing], o primeiro grande manual de medicina chinesa, faz uma breve descrição biológica do feminino, explicando suas especificidades; por fim, dois textos encontrados nas tumbas de Mawangdui [em 1974-74] apresentam técnicas elaboradas de relacionamento sexual que defendem de forma evidente a necessidade de conhecimento mútuo entre homens e mulheres, destacando-se, no entanto, a ênfase ao feminino, entendida aí como dotada de uma poderosa energia essencial.

Nessa mesma época, pequenos tratados sobre o feminino iriam ser produzidos, mas o que obteve mais destaque foi o livro ‘Lições para Mulheres’ [Nujie] de Ban Zhao [49-120 ec]. Ban Zhao era integrante de uma família importante da corte, que se destacara pela erudição e pela educação exemplar de seu pai e irmãos. Ela mesma também foi reconhecida como uma intelectual notável, tendo colaborado na elaboração da ‘História de Han’ [Hanshu], reeditado o livro de Liu Xiang com novos materiais e escrito uma dezena de obras diferentes, hoje em sua maioria perdidas. Seu livro principal, o ‘Nujie’, tornou-se uma peça especial na literatura chinesa pelo seu caráter controverso. Defensora da educação para mulheres, Banzhao escreveu um pequeno manual no qual delineava uma série de atitudes e comportamentos que seriam considerados ‘ideais’ para as mulheres. É difícil saber até onde essa obra reproduz os conflitos internos da autora, tanto quanto pode ter sido adulterada, já que muitos fragmentos são conflitantes, ora representando uma lógica de submissão, ora uma defesa da autonomia feminina. A ênfase na educação erudita talvez seja a chave para aceitar que Ban Zhao estava preocupada em resistir a ideologia masculinizante, propondo que o aprendizado e a formação intelectual eram os instrumentos mais eficazes contra essa ideologia. Uma discussão mais ampla dessa controvérsia pode ser vista em Sattler [2021] e Bueno [2022].

Seja como for, o ‘Nujie’ inaugurou uma linhagem de textos femininos, produzidos por mulheres e destinados a elas, que se estenderia até o final da dinastia Qing em 1912. Os mais destacados deles seriam chamados de ‘Nusishu’, ou ‘Os quatro livros femininos’, considerados o cânone básico do aprendizado feminino. Essa nomenclatura só surgiria séculos depois, durante o período Ming [1368-1644], quando o último dos livros teria sido escrito [como veremos adiante] e o termo foi cunhado em analogia aos ‘Quatro clássicos’ confucionistas, livros básicos que deveriam ser dominados por aqueles que desejavam entrar no mundo letrado. Obviamente, o conteúdo era muito diferente: enquanto esses últimos traziam orientações sobre política, filosofia e sociedade, os ‘Quatro livros femininos’ apresentavam recomendações sobre conduta e propriedade, limitando bastante o escopo do que podia ser entendido como ‘educação para mulheres’ – e afastando-se bastante do que havia sido proposto inicialmente por Ban Zhao.

O segundo livro desse grupo seria os ‘Analectos femininos’ [Nu Lunyu], numa clara analogia ao ‘Lunyu’ de Confúcio. Foi escrito no período Tang (618-907ec) por Song Ruoxin (?-820?), e seu nome emprestava a metodologia empregada no clássico confucionista, ou seja, estava organizado em perguntas e respostas, nas quais Song orienta suas filhas sobre conduta e decoro. A irmã Song Ruozhao (761-828) revisou e completou o trabalho, cuja versão final é assinada pelas duas. Os ‘Analectos femininos’ já revelam uma inflexão nítida em direção ao discurso submissivo, esvaziando gradativamente o alcance dos direitos femininos. Por outro lado, exige ainda que as mulheres precisam ser minimamente educadas, e conheçam alguma coisa sobre leitura e literatura.

Embora não esteja incluído nos ‘Quatro livros femininos’, o ‘Tratado da Fraternidade Familiar Feminina’ [Nu Xiaojing], escrito igualmente no período Tang, empregava o mesmo recurso de copiar um livro confucionista – no caso, o ‘Tratado da Fraternidade Familiar’ [Xiaojing] – para secundar a organização do seu discurso. A razão para o livro não ter alcançado um sucesso canônico se deve, provavelmente, ao seu caráter ‘apócrifo’. A Senhora Zheng, autora do livro, redigiu um livro que teria sido ‘ditado por Ban Zhao’, e é a própria Ban que aparece no texto respondendo as perguntas e ensinando suas lições, em um cenário fictício. Alguns fragmentos do ‘Nujie’ estão presentes, mas arranjados dentro de uma lógica discursiva própria. ‘Nu Lunyu’ e ‘Nu Xiaojing’ apresentam narrativas mais coerentes e focadas no estabelecimento de um padrão de sujeição feminina, consoante a discussões renovadas – e não resolvidas – que voltaram à baila, durante o período Tang, sobre o papel do feminino na sociedade e na ordem cósmica da natureza.

Voltemos agora a terceira obra que compõe ‘Nu Sishu’, o livro ‘Orientações internas’ [Neixun], também conhecido como ‘Orientações femininas’ [Nuxun]. Aparentemente, vários livros - hoje perdidos - foram escritos desde o período Han com o nome de ‘Orientações femininas’, e somente fragmentos foram sobrevivendo ao longo do tempo. A imperatriz Renxiaowen [também conhecida como Senhora Xu] [1362-1407ec], do período Ming [1368-1644], teria condensado alguns desses pedaços soltos, amarrados por uma narrativa própria, criando uma ‘versão final’ do ‘Nuxun’, mas que acabou sendo mais conhecido pelo nome ‘Orientações internas’ [Neixun] por se tornar uma leitura praticamente obrigatória para mulheres da corte. Aparentemente, o intuito da imperatriz era por ordem nas relações intrapalacianas, delicadamente equilibradas por complexas relações de poder familiares. A dinastia Ming é marcada por uma imposição quase definitiva da ideologia machista no âmbito político e social. Após o período de domínio estrangeiro Yuan [1271-1368ec], no qual a posição feminina foi extremamente precarizada pela misoginia praticada pelos mongóis, os intelectuais chineses deram seguimento a essa pressão social, mantendo os retrocessos jurídicos e ideológicos que tornaram a posição das mulheres extremamente reduzida e difícil. Como efeito disso, os livros femininos foram intensamente debatidos e reeditados, muitos com comentários e modificações que visavam adequá-los ao discurso patriarcalista e masculino do momento. O livro da imperatriz Renxiaowen se insere nesse movimento, constituindo um manual de instruções para as mulheres dentro da vida palaciana, mas que deveria ser ‘estendido’ ao restante da sociedade.

Em algum momento desse mesmo período, outra autora pouco conhecida, a Senhora Liu [datas desconhecidas] adicionou sua contribuição a esse debate, apresentando o seu ‘Registros sucintos de modelos para mulheres’ [Nufan Jielu], também chamado de ‘Biografias de Mulheres da sr. Liu’ [Liu Nuzhuan]. O texto trazia uma relação de mulheres notáveis e seus exemplos, exigindo conhecimento histórico relativamente amplo das leitoras, pois fazia referência a diversas personagens, algumas conhecidas, outras nem tanto. Uma quantidade enorme de notas seria necessária para identificar, apresentar e explicar os episódios narrados por ela como exemplos; contudo, é possível identificar seus propósitos pelas breves descrições dadas, que ao fim reforçam todos os conceitos de virtude, renúncia e decoro preconizados no livro da Imperatriz Renxiaowen, assim como do ‘Nujie’ de Banzhao e no ‘Nu Lunyu’.

Foi somente em 1624 que o estudioso Wang Xiang agrupou e reeditou esses quatro livros como os ‘Nusishu’, apresentando-os com copiosas notas explicativas. A partir dali, eles se tornariam a ‘leitura básica’ para mulheres ‘bem-educadas’, com todas as orientações restritivas que essas ideias vinham consolidando. Trata-se, de fato, de uma coletânea organizada por um homem, inserido dentro de uma ideologia estatal, e cujos propósitos determinam as escolhas textuais e conceituais. Ann Pang-White [2018] fez uma tradução da obra de Wang Xiang, que nos permite contemplar os conteúdos e problemas dessa construção canônica, e suas implicações na formação social chinesa no império tardio.

Essa coleção de textos é inédita em nossa língua, e representa um material novo para que possamos compreender os discursos que permeiam a trajetória histórica das mulheres na sociedade chinesa. Contudo, optamos por manter alguns textos selecionados da obra de Lin Yutang, que representam para nós algumas particularidades dessa cultura que entendemos serem enriquecedoras para o nosso conhecimento.

Em ‘Cinderela Chinesa’, Lin recolhe para nós a primeira versão conhecida da história de uma jovem que, maltratada pela madrasta e sua meia-irmã, consegue seduzir um soberano por meio de encantos mágicos, e ao fim, é reconhecida por meio dos sapatos encantados. O mesmo ocorre em ‘O julgamento das duas mães’, peça literária que contém uma história praticamente igual ao episódio ocorrido com o rei Salomão do Antigo testamento. As elucubrações sobre se há uma intertextualidade, uma herança histórica, ou simples coincidência, são deixadas a ponderação particular.

‘Um corpo de Mulher’ e ‘A morte de uma Rainha’ trazem histórias antigas sobre a relação estética com o corpo feminino, e a compreensão sobre as dimensões da beleza e da devoção no imaginário. Já ‘Sobre como se deve amar uma mulher’ é um ensaio diletante sobre o consagrado tema do amor romântico, num conjunto sucinto de orientações reflexivas sobre o papel das relações mulheres-homens; na mesma linha segue-se o texto ‘A respeito do Amor’, no qual se desenvolve uma meditação sobre este sentimento.

‘Pensamentos profanos de uma monja’ traz uma inédita peça sobre uma monja que revela suas insatisfações e desejos ocultos, revelando a atitude de embate contra as instituições religioso-sociais.

Já ‘Sobre o infanticídio e o salvamento de crianças’ é uma denúncia antiga contra a prática de infanticídios existente desde a China antiga, muito comum entre as classes mais pobres, e extremamente desaprovada por muitos humanistas chineses. Cientes das implicações econômicas e sociais que forçavam as famílias a rejeitarem suas crianças – e numa sociedade machista, afetando principalmente as meninas – o escritor Su Dongpo, junto com alguns amigos, iniciam um movimento de auxílio a todas as pessoas com crianças que precisavam de ajuda, fornecendo orientação, bolsas e alimentos.

Mantivemos aqui o fulcral texto de Yu Huai, que apresenta o primeiro relato sobre ‘A origem do enfaixamento dos pés’, a nefanda prática de elite que durante séculos aleijou muitas mulheres, em função das fantasias erótico-estéticas que a envolviam. Embora não afetasse a maior parte da população, era um ideal de beleza que marcava pelo sofrimento contínuo e irreversível, tal como os espartilhos europeus do século 19 ou os sacrifícios plásticos de hoje.

‘Mercado de concubinas’ é a descrição do comércio de casamentos, realizado por famílias cuja pobreza obrigava a vender as filhas para casamentos arranjados. As diferenças entre o matrimônio forçado e a escravidão são praticamente nulas, mostrando que para um extrato da sociedade as pressões poderiam ser ainda mais aviltantes quando forçadas a negociar com membros da elite educada nos cânones masculino-confucionistas.

‘Do encantamento das Mulheres’ e ‘Uma carta familiar sobre uma jovem esposa’ encerram a coletânea, trazendo fragmentos sobre o ideal de comportamento feminino a partir de reflexões masculinas. Nesse sentido, fica claro que o período Ming e Qing havia atingido a culminância das práticas machistas, já que a literatura de orientações para mulheres passara a ser escrita e dominada por homens, num claro sinal de imposição. De certa forma, seria com essa herança cultural que as futuras gerações chinesas teriam que lidar, em um processo árduo de luta e retomada dos direitos das mulheres, e que segue inconcluso.

  

Referências

As seleções aqui utilizadas foram retiradas dos seguintes trabalhos:

Bueno, André. Cem textos de história chinesa. União da Vitória: Kaygangue/UNESPAR, 2011.

Czepula, Kamila. ‘Acerca da sexualidade: o que se fala, o que se cala...a tradução do Diálogo sobre o Tao supremo para o mundo’. Revista Sobre Ontens, 2010:35-43.

Lee Swann, Nancy. ‘Pan Chao: foreman woman scholar of China’. New York: Century, 1932.

Lin Yutang, ‘A importância de compreender’. Porto Alegre: Globo, 1969.

Lin Yutang, ‘Sabedoria de China e Índia’. Rio de Janeiro: Pongueti, 1958.

‘Neijing’. Rio de Janeiro: Domínio Público, 1991.

Pang-White, Ann. The Confucian Four Books for Women: A New Translation of the Nü Sishu and the Commentary of Wang Xiang. Oxford: Oxford University Press, 2018.

Wang, Robin. Images of Women in Chinese Thought and Culture: Writings from the Pre-Qin Period Through the Song Dynasty. London: Hackett, 2003.

 

Indicações de leitura

Bueno, André. ‘Ban Zhao e a ética feminina na China antiga’. Legein, 2002.

Bueno, André. ‘Para uma história da mulher na China imperial’ in Pozzer, Katia; Porto, Vagner; Silva, Maria Aparecida [org.] Um outro mundo antigo. São Paulo: Annablume, 2013.

Bueno, André. ‘Erotica Sinica’. Mais que Amélias, 2014. Disponível em: https://rstmaisqueamelias.wixsite.com/maisqueamelias/2014

Bueno, André. ‘Ban Zhao’. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas: Mulheres na Filosofia, V. 7, N. 3, 2022, p. 16-37.

Czepula, Kamila. ‘Alquimia sexual: uma visão de harmonia sexual na China antiga’. Sobre Ontens, 2011: 71-79.

Sattler, Janyne. ‘Ban Zhao e suas Lições para Mulheres’, 2021. Disponível em: https://germinablog.wordpress.com/2021/03/24/licoes-mulheres-filosofa-chinesa-ban-zhao/

 

Outras indicações em línguas estrangeiras:

Badell, Taciana. ‘El outro sexo del dragon’. Madrid: Narcea, 1997.

Hinsch, Brett. ‘Women in Early Imperial China’. Lanham: Rowman and Littlefield Publishers, 2002.

Peterson, Barbara Bennett. ‘Notable Women of China: Shang Dynasty to the Early Twentieth Century’. London: Routledge, 2016.

Raphals, Lisa A. ‘Sharing the Light: Representations of Women and Virtue in Early China. Albany’, New York: State University of New York Press, 1998.

Rosenlee, Li-Hsiang Lisa. ‘Confucianism and Women: A Philosophical Interpretation’. New York: Suny Press, 2006.